Café, vício ou prazer?
O café foi considerado um dos estimulantes modernos de maior fixação no século XIX. A ponto de Honoré de Balzac (1799-1859) lhe dedicar um texto extraordinário no livro Dos estimulantes modernos.
Bebi café durante toda a minha vida, não abdicando hoje em dia de pelo menos dois cafés expressos: um a seguir ao pequeno almoço, outro a seguir ao almoço. E estas refeições parecem-me incompletas enquanto não bebo o café. Quando ainda criança eramos habituados ao falso café ao pequeno almoço: cevada, chicória e outros produtos que ajudavam a criar uma bebida que se assemelhava ao café.
Parece ser pacífico que o primeiro café terá aparecido na Abissínia e o seu reconhecimento de deve a que um conjunto de caprinos que, depois de ter ingerido muitos grãos de café, passaram a ter comportamentos estranhos como se tivessem ingerido algum produto alucinogénio. Daí a passagem para a infusão dos grãos e depois os vários processos, mesmo artesanais, de torrefação dos grãos foi um salto grande para a humanidade que nunca mais desistiu do café.
Hoje em dia o café espalhou-se pelo mundo e curiosamente, no Brasil, um dos maiores produtores de café, não há o ritual e consumo como se vê em Portugal. Em Portugal, escutar o pedido de um café pode revelar-se uma sequência de palavras que muitos não entendem. Começa pela região de Lisboa onde a maioria das pessoas pede uma bica. Há duas correntes para explicação deste termo: a que parece mais provável é porque se servia o café em depósitos cilíndricos e que na parte mais baixa tinham uma torneira por onde saía a bebida café. Há que, no entanto, explique que a palavra bica se deve a um cartaz publicitário que se lia na vertical com as palavras:
beba
isto
com
açúcar…!
Depois para complicar chegou o tempo das máquinas e dos cafés expressos e no Porto é vulgar ouvir pedir o café com a palavra cimbalino, seguramente porque as primeiras máquinas eram da marca La Cimbali. Em Portugal o café também tem expressões específicas para pedir o café e que indicam os seus detalhes: chávena fria, chávena escaldada, curto, cheio, meia chávena, pingado, garoto claro ou escuro, com cheirinho, sem princípio, garoto, duplo, abatanado, … Cada um com a sua especificidade, mas a velocidade com que é servido é impressionante!
O triunfo do café vem do século XIX. Napoleão Bonaparte (1769-1821) considerava que o café, forte e abundante, desperta-me. Dá-me calor, uma força invulgar, uma dor não sem prazer. Prefiro sofrer do que ser insensível. Também Brillat-Savarin (1755-1826) se surpreendeu com o café e depois se lhe rendeu: sou daqueles que foram obrigados a renunciar ao café; e termino este artigo relatando como um dia fui completamente subjugado pelo seu poder…
Outro autor, como Abu Ibn Sina (930-1036), escreveu que O café é uma espécie de semente de cor amarelo-limão que tem um aroma particular. A sua infusão fortifica os membros, limpa a cútis, seca os humores malignos e perfuma o corpo… Tallyerand (1754-1838) escreveu que o café deve ser negro como o diabo, quente como o inferno, doce como o amor e puro como um anjo.
Há um provérbio turco que revela a importância cultural do café: um bom café equivale a quarenta anos de amizade. Anthony Capella publicou um livro invulgar sobre o café no qual descreve detalhadamente os percursos do café especialmente a escolha de lotes e as atividades dos provadores. O livro “Os Vários sabores do Café” (2008), apresenta, de forma romanceada, o mundo desconhecido do comércio do café justificando em vários passos a seu fascínio: …porque uma chávena de café bem feito é o começo de um dia de ócio. O seu aroma é cativante, o seu sabor é doce.
O ato de beber café tem muitas formas variadas, bem como a forma de o apresentar. Para conhecermos a importância de um produto de origem alimentar, numa região ou num país, basta analisar os termos ou locuções populares dessa região. Possivelmente o Brasil, o maior produtor mundial de café, tem um vasto registo de expressões ligadas ao café e vou apresentar algumas: café pequeno, sucesso fácil, obtenção de lucro com pouco gasto; cafedório, café aguado com pouco sabor; café de dedo, o mesmo que café pequeno; café de assovio, café que se toma sem acompanhar com pão ou bolo; café baixo, café de baixa qualidade; café de pelar cachorro, muito quente capaz de queimar a língua; tintura, café muito forte; o amor é como o café: quando esfria, perde o sabor; café, sopa e mulher: só presta quente; para ficar rico, deve-se tomar café sentado; apanhar uma flor de café na véspera de Sto António e por debaixo do travesseiro, faz sonhar com quem casar; para o café render, deve ser torrado na lua nova; torrar café ao Domingo não presta; quem toma café em pé não fica rico; deitar um pouco de café atrás da porta, espanta a visita; … interminável esta lista!
Também na medicina popular encontra os seus remédios: para a asma, a anemia, a azia, a bebedeira, a bronquite, a falta de ar, … Caso para dizer: bem-aventurado café!
Nas minhas viagens tenho o cuidado de procurar espaços com café expresso, o que não é, por vezes, fácil. Não posso esquecer a alegria de, em Sobral, ter encontrado o Café Jaibara no Beco do Cotovelo, e em Aracati o Café D’ Amélia na Rua Coronel Alexanzito que diariamente me satisfaziam com os meus dois cafés expressos por dia. Será que é um vício? É seguramente um momento de muito prazer!
© Virgílio Nogueiro Gomes
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